No romance de Saramago, “A Jangada de Pedra”, dos anos 80, a Península Ibérica separa-se do resto do continente europeu e fica a vogar, à deriva, no oceano Atlântico. Mas, talvez, a ficção fosse apenas uma premonição da realidade futura, com apenas algumas ressalvas – não é a Península Ibérica, mas sim apenas Portugal, e não é exactamente à deriva, mas com um destino bem objectivo.
Antes de mais, vamos começar por algo bem objectivo, e que toda a gente sente diariamente. Aliás, vamos começar por aquele que é o tópico de conversa de elevador por excelência – não, não é o futebol (já lá vamos), é o tempo. Não sei se já alguém reparou, mas, este ano, em Portugal, as chuvadas intensas sucedem-se, umas após outras, envoltas num calor asfixiante e húmido. Num calor tropical. Sim, o “weather in Portugal feels tropical”, é a expressão certa! Como se nos estivéssemos a movimentar cada vez mais para Sul e Sul, até nos fixarmos ali, entre trópicos.
E o futebol? Sim, agora o futebol. Também sentem esta onda de fanatismo clubístico a crescer em Portugal? Em que nada é mais importante que o próximo jogo de futebol do nosso clube? De tal forma que, quando se tem que fazer um anúncio político impopular, o melhor é fazê-lo durante um jogo de futebol de um clube importante? E a intolerância e cegueira face ao que acontece nos jogos de futebol é um assunto mais importante que a justiça dos resultados, a forma como os mesmo são conseguidos ou questões bem mais relevantes para a vida de cada um de nós, de um ponto de vista económico, político e jurídico? Como se estivéssemos a ver futebol num dos países onde ele mais se joga e é mais importante – como a Argentina e o Brasil.
E foi por brincar com as analogias ao futebol e ao tempo que, de repente, me apercebi. Atingiu-me como um relâmpago! Era algo que, subliminarmente, eu estava a sentir cada vez mais. Mas uma sensação que eu era incapaz de nomear. E, de repente, percebi! Cada vez mais sinto Portugal a aproximar-se do continente em que passo cerca de 5 meses por ano. Cada vez mais sinto Portugal a afastar-se do seu objectivo europeu e a aproximar-se da América Latina.
E deixei de olhar para pequenos sinais, que comecei a relacionar mais por brincadeira. E decidi olhar para o que todos os dias nos afecta. Para a política e economia. Para tentar desvanecer esta ideia de afastamento do continente europeu, e de deriva da nossa jangada para a América do Sul. E olhei para a política. E assustei-me!
Uma das coisas que mais confusão faz a quem viaja para um país como a Argentina (e nada de confusões, eu literalmente adoro a Argentina) é a imprevisibilidade do que se vai passar nesse dia. Nomeadamente em termos de greves. Nunca se sabe muito bem que sindicato vai fazer greve nesse dia, ou porque razão! Um dia é uma companhia de aviação que está parada porque os pilotos estão de greve, no outro é porque as hospedeiras resolveram fazer uma paralisação, a seguir é a vez dos taxistas, ou enfermeiros. E as razões são tão diversas como protestos salariais, paralisações por solidariedade com outros sindicatos noutras indústrias não relacionadas ou greves de protesto por um outro sindicato rival ter sido aceite nas negociações laborais – uma maravilha! E, depois, em Portugal, vejo-me numa fila de trânsito de duas horas, porque os funcionários de uma empresa estatal (a CP) falida e com excesso de pessoal querem manter as regalias sociais e o número de funcionários. Ou vejo uma manifestação por aumentos salariais na função pública num Estado que apenas é capaz de ainda pagar salários públicos porque recorre a empréstimos externos. E começo a sentir a jangada a mover-se mais e mais para Sudoeste, mais e mais próxima da América do Sul…
E olho para a situação e discursos políticos – e, nessa altura, tenho a certeza! Já somos mais sul-americanos do que europeus. Revejo nos discursos políticos portugueses (de todos os 5 principais partidos) os mesmos raciocínios de muitos políticos sul-americanos. A mesma fuga a discutir propostas concretas, a construir cenários, a mesma falta de vontade em trabalhar com outros para chegar a soluções melhores. E a mesma base de ataques políticos e pessoais aos opositores, a mesma contra-informação, a mesma incoerência encapotada, a mesma importância dada à aparência. E a mesma incapacidade dos eleitores exigirem discussões e propostas concretas e concretizáveis. Como se a jangada portuguesa estivesse prestes a encalhar na América Latina.
Eu adoro Portugal. E, confesso, adoro a América do Sul. Mas, a minha esperança pessoal é a da evolução positiva, da modernidade, liberdade de expressão, protecção democrática (que, em alguns países sul-americanos, é uma evolução real e há muito esperada). A minha esperança é de que a nossa jangada pare a sua deriva objectiva para o sudoeste. E retorne firme e resolutamente para o continente europeu – onde está o nosso sonho de evolução e cidadania.
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