8 November 2011

Avenida Afonso Costa

Uma das vantagens de viver fora de Portugal, é ser mais fácil lidar com explicações históricas de conveniência... Por exemplo, sempre ouvi dizer que na Primeira Guerra os “Ingleses tramaram” Portugal na Batalha de La Lys... Deixo ao leitor julgar quem sacrificou desumanamente os milhares de soldados Portugueses...
Portugal entra na Primeira Grande Guerra por duas razões: primeiro e mais importante, porque queria ser um participante do palco internacional, por forma a assegurar a soberania dos territórios ultramarinos (note-se que em 1912 a Grã-Bretanha e a Alemanha tinham assinado um acordo secreto para partilhar Angola e Moçambique) e, depois, porque o governo de Afonso Costa, em grandes dificuldades internas, pretendia desviar as atenções dos seus problemas e criar uma união nacional à volta da guerra e de um inimigo comum. Assim, no dia 24 de Fevereiro de 1916, Portugal apreende os navios Alemães e Austro-húngaros fundeados nos seus portos. Em resposta, a Alemanha declara guerra a Portugal no dia 9 de Março de 1916.


Portugal, com um exército especializado em guerras africanas, depauperado, com oficiais experientes perseguidos (ou presos) e com oficiais sem experiência promovidos pela sua simpatia republicana, iniciou, em Tancos, o treino do Corpo Expedicionário Português (CEP). O governo republicano, em busca da aprovação pública e sossego dos soldados e suas famílias, aclamou tal treino como o “Milagre de Tancos” (o que tem piada, vindo de um governo anti religioso).
Porém, tal “milagre” produziu uma força que, após desembarcar em Brest, a partir de 2 de Fevereiro de 1917, quando não ficava de quarentena por causa de casos de febre tifoide (o que lançava o pânico de uma epidemia no comando aliado), tinha que ser completamente equipada e treinada para a guerra industrial de trincheiras pelos Britânicos. O “milagre”, à boa maneira Portuguesa, tinha somente fardado homens de meios rurais, enviados e entregues desarmados, sem equipamento, sem treino de guerra de trincheiras, sem saber operar metralhadoras e com artilheiros sem nunca terem visto peças de grande calibre. Foram enviados cerca de 60’000 portugueses e portuguesas (enfermeiras da Cruz Vermelha Portuguesa) assim, sobretudo gente do campo, para a frente da Flandres, para a primeira guerra industrial, a mais desumana de sempre.
A 4 de Abril de 1917, o CEP toma uma posição na frente e sofre a primeira morte em combate. A 4 de Junho o CEP repele um ataque germânico. A 10 de Julho o CEP toma responsabilidade de um sector da frente, sob o comando britânico. Na frente, os soldados portugueses voluntariavam-se para infiltrar as linhas inimigas e efectuar sucessivos raids, mesmo sabendo que teriam grandes baixas. Aliás, entre Julho de 1917 e Março de 1918 os Alemães foram obrigados a rodar 3 divisões em frente à linha controlada pelo CEP. E, apesar dos Portugueses, até 9 de Abril de 1918, não terem enfrentado uma grande batalha, já tinham perdido mais de 10% dos homens para os ataques com gás, artilharia e durante os raids sucessivos entre os inimigos. Em paralelo, o Governo Português não assistia as tropas e somente contava com a boa vontade e paciência Britânica para o fazer. Basicamente, os Portugueses ficaram abandonados à sua sorte, sem substituição das baixas, situação que se agravou quando os Britânicos tiveram que redirecionar meios para o transporte do exército Norte-Americano para a Europa.
O cansaço e as baixas que não eram substituídas tornaram-se num grave problema. As unidades estavam extremamente depauperadas e com metade dos oficiais desaparecidos (quer por baixas quer por abandono). Não havia licenças porque não havia quem os pudesse substituir e, ao contrário dos soldados, muitos dos oficiais já nem voltavam ao serviço através de “cunhas” (dos 519 soldados que tiveram licença, voltaram todos, enquanto dos 1912 oficias que tiveram licença, só voltaram 1090 [!], o que me faz ter ainda mais respeito pelos homens que voltavam ou ficaram). Dada a fragilidade de recursos na frente, as tropas portuguesas foram mantidas meses na linha da frente. Meses... algo impensável nas tropas aliadas ou inimigas, que não estavam mais de 30 dias seguidos em tal inferno. Em Abril, o CEP tinha brigadas com 8 meses seguidos de linha da frente...
O moral das tropas portuguesas durante o rigoroso Inverno de 1917-1918 era péssimo, não só pelo frio e lama, mas porque tinham sido abandonados, numa guerra que não consideravam sua, por uma parte dos oficiais e pelo Governo Português. Os generais Gomes da Costa e Sinel de Cordes comunicaram por diversas vezes ao governo português o estado calamitoso das tropas. Na lama das trincheiras, enquanto os suicídios aumentavam, os nossos soldados chamaram à terra de ninguém “Avenida Afonso Costa”.
Já com Sidónio Pais, que subiu ao poder em Dezembro de 1917, foi emitido o Decreto n.º 3959 em 22 de Março de 1918, que determina as condições para a rendição dos militares do CEP. Apesar da rendição ter sido programada para o dia 27 de Março, a mesma foi adiada por causa de uma grande ofensiva alemã no Somme. Porém, quando, no dia 4 de Abril de 1918, o General Tamagnini alertou o comando britânico de que havia motins nas tropas, a decisão de render o CEP da linha da frente foi imediata. Foram, assim, dadas ordens para retirar a Primeira Divisão do CEP no dia 6 de Abril sendo, a Segunda Divisão, rendida no dia 9 de Abril. E, entre o dia 6 de Abril e o dia 9, a linha deixada pela Primeira Divisão seria coberta pela British 55th (West Lancashire) Division e pela Segunda Divisão do CEP, tendo esta ficado com uma linha que era o dobro do normal para os homens que tinha.
Pela madrugada do dia 9 de Abril de 1918, as tropas portuguesas - as mais desgastadas de toda frente, reduzidas, desmoralizadas, abandonadas pelo governo e abusadas por um comando britânico (a que o Governo Português não pedia contas) - contavam os minutos para saírem da trincheira. Porém, às 4h15 da manhã, oito divisões alemãs, com cerca de 100’000 homens e 1’700 peças de artilharia, atacaram (os Portugueses eram cerca de 20’000 com 88 peças), dando-se início à Batalha de La Lys.
Batalha de La Lys - West Point Atlas of War WWI
O comando alemão pretendia utilizar as novas tropas de assalto (com o tratado de Brest-Litovsk com a Rússia, foram deslocadas 700’000 tropas alemãs da frente Russa para a frente Ocidental), para avançar até Calais e Boulogne-sur-Mer e isolar as tropas britânicas das francesas. Esta operação gigantesca teria início arrasando o sector português, o mais frágil - segundo o comandante alemão, Erich Ludendorff, o plano era “abrir aqui um buraco e depois logo se vê!"
Com a Segunda Divisão do CEP desbaratada, a reserva britânica do Corpo XI junta-se a 2 batalhões portugueses sobreviventes a Sul e que impediram o avanço germânico para Sul. O British 50th (Northumbrian) Division e o 51st (Highland) Division ocupam-se do restante da contra ofensiva. A Batalha de La Lys durou de 9 de Abril de 1918 até ao 29 de Abril de 1918.
Batalha de La Lys
Apesar das acções heroicas de, entre outros, do Soldado Milhões, do comando do Capitão Bento Roma e, certamente, do soldado Manuel da Silva (que os alemães enterraram com uma cruz dizendo “Aqui jaz um valente Português”), as tropas portuguesas, em apenas quatro horas de batalha, foram inutilizadas e perderam cerca de 7'500 homens entre mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros, ou seja, mais de um terço dos efectivos, entre os quais 327 oficiais. Note-se que as tropas britânicas, durante a operação Michael um mês antes, tinham sido batidos com a mesma velocidade.
Prisioneiros portugueses da Batalha de La Lys
Aquando do armistício de 11 de Novembro de 1918, o CEP tinha sofrido 2’160 mortos, 5’224 feridos e 6’678 prisioneiros — 14’000 baixas de um contingente de 60’000. No cemitério Português de Neuve-Chapelle em França são mantidas 1’831 campas, sendo 239 de soldados desconhecidos. A participação destes homens na Batalha de La Lys, assegurou a participação de Portugal na conferência de Paris com plenos direitos.
Cemitério Português de Neuve-Chapelle
Estes homens deram muito mais do que a sua República merecia e, por causa deles, Portugal manteve os seus territórios ultramarinos por mais meio século. Se não os respeitarmos, nada faz sentido como nação. Sem reconhecer a nossa história, se omitirmos factos por conveniência ou vergonha pelo mal que estes homens foram tratados, não os estamos a respeitar.

Aconselho a leitura do livro João Ninguém : soldado da Grande Guerra : impressões humorísticas do C.E.P. do Sr. Capitao Menezes Ferreira, que descreve muito do que o CEP passou. Poderão consultar fotografias do CEP aqui, e mais detalhes do CEP aqui. A lista de 1643 militares mortos e identificados encontra-se aqui. Os fascículos da Ilustração Portuguesa, que poderão ser consultados online na Hemeroteca Digital da CML, também são uma excelente fonte sobre o que era dito e mostrado na altura. Igualmente, podem-se ver raros filmes a cores da linha da frente aqui (alerto que algumas filmagens são chocantes):


2 comments:

  1. Dos amigos de Peniche, nunca tivemos boas recordações. Nos anais da História, os Ingleses sempre nos tentaram lixar. Mais vale um inimigo do que um falso amigo.

    Neste caso específico, para além da leitura, já sugerida pelo José, aconselho uma visita ao Museu Militar de Lisboa, mesmo em frente a Santa Apolónia. O espólio e as coleções sobre a 1ª grande guerra estão muito boas.

    De salientar que nesta 1ª Grande Guerra, não havia muita estratégia, e a doutrina militar ainda estava presa aos números de contigentes e às peças de artilharia. Basicamente, era uma carnificina, sem qualquer tipo de estratégia, e ganhava quem tivesse maior número de tropas de infantaria.
    O contigente português era mais uma questão política, e deveria ter sido empregue em África contra as colónias alemãs.

    Alimentámos a morte com mais umas almas...

    ReplyDelete
  2. Elites rascas, povo valoroso, história de um país.

    ReplyDelete